. A maior parte deles será narrada em primeira pessoa, como este que foi escrito há alguns dias. Espero que gostem!
O Caminho da Esperança
Muito
longe os sinos de uma catedral choravam, e seus lamentos chegavam aos meus
ouvidos após invadirem o quarto do hospital pela janela. Cada badalada soava
como um baque torturante para mim, que cerrava os punhos e fixava meus olhos
cinzentos no leito a minha frente, sentindo-me sem chão. Por um instante pensei
em desviar o olhar, mas não queria que as outras pessoas percebessem a minha
fraqueza.
No
instante seguinte, repreendi-me por conter as lágrimas. Ora, eu estava sozinha!
Podia exteriorizar todo o sofrimento que sentia e ninguém jamais saberia... Mas
mesmo assim, desagradava-me a idéia de chorar naquela situação. Hesitante,
contemplei o rosto de minha mãe. Não fosse a palidez de sua pele, ela podia
simplesmente estar dormindo, com uma serenidade incalculável e até um mínimo
sorriso estampado na face branca. Tinha partido em paz. Incomodada com
isso, desviei o olhar para observar os inúmeros aparelhos que circundavam seu
leito. Não sabia para o que serviam, mas sinceramente não tinha o menor
interesse nisso. Aquelas máquinas eram simplesmente túneis que eu estava usando
para escapar da realidade a minha frente. Fingir ter interesse por elas era
meramente um instinto de sobrevivência, que usei para enganar a mim mesma e
apaziguar um pouco o sofrimento que sentia.
Dando
um muxoxo de impaciência, percebi o quanto estava despreparada para aquilo. Com
meros 14 anos, a vida fora gentil comigo até então, e eu nunca tinha perdido
alguém que realmente amava. Na verdade, um familiar meu já tinha falecido há
muito tempo, tanto que eu sequer me lembrava da ocasião. Minha mente de cinco
anos não conseguira entender tudo aquilo, e simplesmente escolhi obliterar
aquela lembrança. Fiz uma escolha sábia, assim não conheci aquela dor tão cedo.
Contudo, será que tal atitude realmente tinha sido a melhor coisa a se fazer?
Neste momento eu mais uma vez me mostrava incapaz de absorver tudo aquilo.
Continuava tão frágil quanto há nove anos.
Com
tais dúvidas em mente, levantei-me e mais uma vez contemplei a face de minha
mãe. Percebi como a pele pálida contrastava violentamente com seus cabelos
negros e ondulados. Surpresa, toquei meu próprio cabelo com a mão e observei-o.
Até então não tinha reparado como era semelhante ao dela... De que antepassado
será que tínhamos herdado isso? Percebi quantas perguntas eu podia ter feito,
quantas coisas tínhamos para conversar... Quantas vezes eu preferi ficar
sentada na cama reclamando de tédio a ir falar com ela? Eu sou hipócrita... Por
tanto tempo preferi a solidão, e agora que ela me era empurrada eu queria
renegá-la mais que qualquer coisa. Senti um aperto no peito e levantei-me.
Sabia que meu pai me aguardava à porta do quarto, chorando, mas esconderia as
lágrimas ao me ver. Ele, exatamente como eu, também queria parecer forte para
os outros. Não só para os outros, como também para si mesmo. Uma máscara de
falsidade e mentira.
Dei
as costas e caminhei até a porta branca. Tocando a maçaneta, puxei minha mão de
volta como se tivesse me queimado. Receei. As lágrimas enfim tinham vindo aos
meus olhos. Perguntei-me “O que eu faço agora?”. Seria agradável ficar ouvindo
as condolências mecânicas dos médicos e enfermeiras que nunca tinham sequer
conversado com minha mãe na vida? Certamente que não... Tampouco tinha intenção
de ver outros parentes murmurando palavras de conforto enquanto se apiedavam.
Eu queria ficar sozinha, apenas isso. Com os olhos novamente secos, enfim abri
a porta do quarto. Como esperava, meu pai estava sentado em um banquinho do
corredor, com os olhos cinzentos muito úmidos e a face corada. Esboçou um
sorrisinho mínimo para mim, que não retribui. Por que agi assim? Não faço idéia.
-
Vou pra casa... – Murmurei, sem encará-lo.
Ele
devia ter assentido, pois não me impediu. Caminhei pelo corredor do hospital,
passando por médicos e enfermeiros que corriam apressadamente buscando atender
aos pacientes, muitos dos quais não tinham quartos e estavam precariamente
acomodados nas galerias do lugar. Perguntei-me o que significava tudo aquilo.
Qual era o sentido de viver, se a morte mais cedo ou mais tarde chegaria para
todos? Aquela realidade me atingira como uma bala errante, e destruíra
completamente as frágeis fundações sobre as quais eu tinha erguido minha vida
até então. Que caminho eu devia tomar, se todos conduziam ao mesmo destino?
Deprimida,
saí do hospital e observei a cidade a minha volta. Prédios, pessoas, carros,
céu nublado, pessoas, vento... Pessoas, asfalto, frio, pessoas e mais pessoas.
Ignorei a brisa gelada que fazia meu vestido azul esvoaçar. Tampouco a percebi
de imediato, na verdade. Pus-me a vagar pelas ruas que pareciam encobertas por
uma névoa cinzenta, sentindo um medo inexplicável de tudo e de todos. As vozes,
os risos, eu queria fugir de tudo aquilo. Muitas pessoas. Cabisbaixa, caminhei
por vários minutos, e só quando ergui a cabeça para atravessar uma rua avistei
meu Eldorado: Um simples parque público. Sorrindo, percebi que meu desamparo
terminaria ao sentar-me no banco de ferro que repousava em meio à grama verde.
Corri até lá, exultante, como um homem perdido no deserto avança rumo à miragem
de um oásis.
O
parque estava vazio, possivelmente porque o céu estava encoberto por nuvens e
em breve choveria. Não me importei com isso, pelo contrário. Ficar sozinha era
tudo que eu desejava naquele momento. Sentando-me no banco, sorri tolamente
olhando para os lados. Enfim estava salva... Observei o mundo a minha volta. A
cortina cinzenta continuava lá, encobrindo todo o panorama, e agora se somava a
ela o ruído de trovões ao longe. Eu estava enxergando tudo em preto e branco.
Suspirei frustrada. Queria arrancar aquela angústia que dominava meu peito.
Queria parar de sentir aquele sofrimento incalculável. Fixei os olhos no alto,
e então uma gota d’água caiu em minha face. Tinha começado a chover. Olhei para
os lados, pessoas corriam para evitar a chuva. “Por que a pressa?”, pensei,
vendo o quanto todos temiam se molhar. Mas não eram todos. Ignorando a chuva
que não tardaria a ficar mais forte, um garoto mirrado e moreno caminhou até
onde eu estava. Contemplei seus olhos negros, sentindo-me incomodada. Se eu
estava naquele lugar apesar da chuva, significava que queria ficar sozinha. Era
difícil demais para ele entender isso? Alheio aos meus pensamentos, o pequeno
se aproximou com uma expressão curiosa. Parecia não se importar com o fato de
sua camiseta, calção e sandália começarem a ficar molhados.
-
Tia, o que está fazendo aqui?
Não
respondi a pergunta de imediato. Contemplei-o perturbada: Por que ele estava se
importando comigo sem sequer me conhecer? Vacilante, respondi com uma única
palavra.
-
Nada.
Ele
ergueu as sobrancelhas, e sorriu minimamente.
-
Vai pegar chuva se continuar aqui, e isso dá gripe!
Desviei
o olhar para a grama verde. Estava sendo advertida por um garoto que não devia
ter mais de cinco ou seis anos? Que decadência.
-
Eu sei disso... – Murmurei incomodada.
Para
minha surpresa, senti que ele pegava minha mão. Encarei-o mais uma vez, e vi
que ele sorria ainda mais.
-
Então vem, não quero que você se molhe...!
Por
mais que ele fizesse força, não conseguia fazer com que eu levantasse. Para
facilitar seu trabalho, levantei-me e me deixei ser conduzida. Não entendo por
que agi assim, mas a simples presença dele parecia apaziguar o conflito
interior que ocorria em mim. Juntos,
atravessamos o parque enquanto a chuva se fortificava cada vez mais, e quando
estávamos perto de um toldo subitamente me desvencilhei dele. Ele olhou para
mim sem entender.
-
O que foi...? – Perguntou preocupado.
Acredito
que eu estava com uma expressão de raiva. Eu realmente sentia raiva. Até agora
eu sempre tinha me virado muito bem sozinha, por que estava permitindo que
aquele moleque se infiltrasse no meu psicológico e aliviasse meu sofrimento?
Sem hesitar, dei-lhe as costas.
-
Por favor, me deixe em paz... – Sussurrei, voltando para o parque.
Uma
vez lá, sentei-me novamente no banco e olhei para o alto. A chuva agora caía
forte o bastante para esconder as lágrimas quentes que lavavam meu rosto. Assim
ninguém perceberia que eu estava chorando. Satisfeita, sorri ao sentir o
sofrimento aparentemente abandonar meu corpo, pois enfim tinha parado de
reprimir meus sentimentos. Eu não precisava de ninguém para ser feliz, afinal.
Como eu tinha nascido sozinha e morreria sozinha, também viveria sozinha.
Simples assim. Não precisava de outras pessoas para encontrar o caminho certo.
Neste momento, percebi um movimento ao meu lado. Virando-me surpresa, vi que o
garoto de antes estava sentado me contemplando, e sorriu pra mim.
-
Você gosta desse lugar, hein, tia?
Continua...
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